segunda-feira, 27 de outubro de 2014

abismos

procuramos nos livros sempre algo extraordinário. conforme vamos encontrando, mais vamos procurando. se conseguirmos absorver o que nos é dado a ler e o que o extraordinário transmite então aí corremos o risco de nos tornarmos mais exigentes. conseguimos dizer que um livro é bom, mas a nossa fasquia sobe até sítios difíceis de alcançar.


neste livro de meckert vou saltar directamente para o último conto do livro, o Abismo. os outros são bons contos, mas, lá está, lêem-se com relativa tranquilidade. este, pelo contrário, leva-nos a abismos perigosos. com alguma investigação podemos ficar a saber que pelo menos o contexto em que se passa a história é real, mas ainda assim muda pouco no tipo de abismo em que entramos (já não digo caímos por ser de uma absoluta redundância, por todas as razões, não apenas as gramaticais). o sítio que meckert encontra é um sítio nosso, comum, que nos pode ou não ter sido desvendado. o temor que se abre como portas metálicas é um temor comum à humanidade, ao conjunto, ao limite desta nossa condição que se mantém tão desconhecida. uma procura intensa de uma visibilidade que só a nossa possibilidade de morte torna possível, por mais irónico que isso seja. é tão humano querermos ser vistos como tornar os outros invisíveis. só vemos o que é extraordinário, que rompe barreiras e convenções, mas dificilmente nos fascinamos com o comum. na própria literatura é raro quem consegue de forma eficaz retratar o normal. quem o faz é só por esse feito um escritor fantástico. jean meckert era um escritor extraordinário que soube elevar a sua absoluta normalidade e invisibilidade a um medo de todos nós, humano e orgânico, um medo que toca por um lado a solidão, pelo outro a certeza da nossa finitude.

A vida de Jean Meckert esteve longe de ser fácil. Figura rebelde das letras francesas, Meckert nasceu em Paris a 24 de Novembro de 1910, tendo sido separado da família em 1920 e enviado para o asilo Lambrechts, uma instituição protestante situada em Courbevoie. Desses quatro anos de orfanato ganhou uma repulsa pelo ensino religioso, guardando para sempre os sentimentos de abandono e humilhação. Na escola revelou-se um bom aluno, obtendo o diploma do ensino primário e trabalhando como aprendiz numa empresa de construção de motores eléctricos. Em 1927, já como empregado de escritório, ingressa no Crédit Lyonnais, lugar onde a sua mãe trabalhava como empregada de limpeza. Apanhado pela crise em 1929, Meckert perde o emprego e vai subsistindo através de pequenos trabalhos. Para escapar a esta vida miserável alista-se no exército em 1930, por um período de dezoito meses, sendo punido com várias penas de prisão por ausências injustificadas, conseguindo ainda assim ser promovido ao posto de cabo pelo comandante da 5ª Companhia de Engenharia. Ao regressar à vida civil em 1932, vê-se novamente mergulhado na pobreza. Estávamos na grande época do desemprego, onde era necessário fazer de tudo para sobreviver, e Meckert deitou a mão a tudo o que conseguiu, como o trabalho de vendedor ambulante ao portão da fábrica da Renault. O seu quarto de hotel, em Belleville, torna-se a sua «última trincheira», o refúgio onde escreverá narrativas inspiradas na sua própria existência, designadamente os três contos publicados em “Abismo e outros Contos” (Antígona, 2013): “Um Crime”, “O Bom Samaritano” e “Abismo”.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

a Flanzine do Azul

foto de Mar Babo

 era de noite, no Porto, uma noite de chuva. andava por ali com o João Pedro Azul, editor da Flanzine e da Flan de Tal, uma editora que se lança agora no seu primeiro livro Poemanifesto. a Flanzine, essa, já vai no número #5, a caminho do #6 que sai em Dezembro, com o tema FOME.

entrámos num bar, Duas de Letra, um dos tantos onde a Flanzine foi apresentada no Porto, pedimos uma bebida e fizemos fortes e prédios com as peças de Lego que havia em cima da mesa. e se fizéssemos agora a entrevista? sugere ele. eu pus a gravar aquela que seria até agora a mais descontraída de todas as entrevistas, afinal estávamos dois amigos num bar e havia Legos e Martini. talvez também por isso, pela intimidade e descontracção, foi fácil começar ali a desenhar o perfil deste editor que, ao assumir-se como editor de um fanzine, prefere não adoptar as características de um editor de livros. a Flan de Tal fica para uma próxima conversa, é uma editora que está agora a fazer-se crescer e a formar uma linha editorial. em construção.

ao fazermos uma revista ou um fanzine há características que lhe são próprias. o editor convida escritores, autores, ilustradores sabendo que ali lhes está a oferecer um espaço. o trabalho do editor fica limitado (no que a palavra "limitado" tem de bom) pela autonomia do próprio autor que, ao ser convidado, tem uma liberdade de acção que está também relacionada com o facto de aquele texto vir acompanhado de outros que não são seus. assim, cria-se na Flanzine um espaço de risco, autonomia e experimentação, que torna o fanzine não só um espaço de surpresa como também um espaço de encontro de escritas que não se encontram em outros sítios.

todos os números da Flanzine têm um tema diferente. até agora mala, medo, boca, carrossel, cama e fome, no número de Dezembro. no entanto o Azul afirma que não há uma linha literária no fanzine, apenas esse tema. enquanto juntos questionávamos essa ideia, tantas vezes obscura, do que é uma linha literária apercebemo-nos de que há duas formas de marcar uma linha numa publicação: por um lado ter alguém à frente que convida escritores ou poetas que identifique com a linha que pretende, por outro alguém que selecciona textos entre vários, tentando que estes se liguem ao mesmo imaginário, entre eles. na Flanzine escolhem-se autores por empatia, por relações de amizade e proximidade, por se acreditar no potencial literário e artístico dos convidados. o Azul acredita que a forma de retribuir o trabalho e dedicação dos seus autores é através de um enamoramento, uma relação de proximidade que se vê em todo o processo do fanzine. é esse o funcionamento deste editor tão particular, que cria linhas invisíveis entre todas as tantas pessoas que colaboram com a Flanzine, criando relações que se baseiam na confiança, gratidão e admiração. talvez por isso o Azul tenha sido o primeiro a dizer que não há editores independentes e sim editores interdependentes. e tem razão.


podem assinar / comprar a Flanzine através do email: zine.flanzine@gmail.com ou encontrá-la em alguns dos mais belos pontos de venda independente do país. 

página fb da Flanzine

página fb da Flan de Tal


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

o belo "efeito kuleshov"

"Lev Kuleshov, cineasta Russo (1899-1970), mostrou a importância da edição (montagem) enquanto ferramenta essencial no cinema. Utilizando esta técnica percebeu que o significado de uma sequência de planos pode depender apenas da relação subjetiva que cada espectador estabelece entre imagens ou planos que, isoladamente, não possuem qualquer sentido. Uma das suas experiências cinematográficas consistiu em intercalar o plano onde surgia um actor inexpressivo com os planos de um prato de sopa, de uma criança num caixão e de uma mulher semidespida. Como resultado, apesar do plano do actor ser sempre o mesmo, a audiência encontrou no rosto do actor a expressão de fome, de piedade e de desejo."

é assim a contracapa do livro da dois dias edições & Amor-Livr'o, um livro objecto (gosto tanto de encontrar livros objecto, chamá-los assim, e nem saber bem a que me refiro) de leitura compulsiva. com imagens que são acompanhadas por dois ou três textos, um que realmente acompanhava a imagem e outros imaginados, o leitor faz parte integrante do livro ao experimentar o efeito Kuleshov. como disse João Botelho este é um livro em que o leitor trabalha e participa. é um livro que ultrapassa caixas e quadrados e coloca-se num novo nível de transição, tão necessário como poderoso. ficam algumas imagens do lançamento. 














quarta-feira, 8 de outubro de 2014

a abysmo do cotrim


 quando trabalho com um autor quero sempre trabalhar com ele.
um editor ideal é uma série de "eus"
João Paulo Cotrim

fui à abysmo encontrar o João Paulo Cotrim num fim de tarde de Verão. foi uma das primeiras entrevistas. conhecia o trabalho do João Paulo mas não conhecia a pessoa. foi no desenrolar da nossa conversa que percebi o potencial do editor-pessoa. uma das resoluções que tinha definido quando iniciei este projecto de investigação foi que ele se iria desenrolando consoante aquilo que fosse acontecendo durante as entrevistas. e ao conhecer o João Paulo e o seu trabalho na abysmo percebi rapidamente que tínhamos aqui um caso de um profundo equilíbrio entre crescimento e fidelidade a princípios editoriais dos quais não se abdica e que, a abdicar, tirariam o sentido da existência da editora como ela fora pensada.

ainda não cheguei à definição final de denominação destas editoras, ainda me fico pelo "editoras independentes" ou "pequenas editoras". o ter escolhido a abysmo como um dos primeiros casos de estudo não foi visto por todos de forma pacífica. será a abysmo uma pequena editora ou uma editora independente? serão estes conceitos inclusivos? a abysmo mostra que não. que uma editora independente não é obrigatoriamente uma pequena editora (e muito mais tinta teria de correr sobre esta questão do "tamanho". avante.).

João Paulo Cotrim criou a abysmo em Setembro de 2011 por uma circunstância simples e comum ao início de muitas editoras, a vontade de publicar um livro específico, o Branco das Sombras Chinesas neste caso, por sugestão de António Cabrita, autor da abysmo e amigo. depois dessa sugestão percebeu que aquilo que gostava era de fazer livros e que por isso o melhor que podia fazer era fazê-lo profissionalmente mas para ele próprio e não para terceiros. define nessa altura esses princípios editoriais (que são mais do que linhas ou posições) que passam por um compromisso total com o texto. esse compromisso dita as regras editoriais de escolha de originais. o facto de terem surgido no início de uma crise económica muito violenta para qualquer negócio colocou-os num sítio onde muitas editoras se colocaram nestes últimos três anos - um sítio de liberdade onde se vão testando barreiras e limites, onde se arrisca a publicação de novos autores. durante a conversa fomos revelando algumas das características mais determinantes da abysmo. o texto é escolhido por um lado pela sensação do editor que lhe transmite a qualidade literária do mesmo e depois tendo como base a confiança em alguns amigos que lhe sugerem autores. o autor que entra para abysmo torna-se família e acaba por participar nos processos da editora quer nos seus livros quer no conjunto editorial. os autores tornam-se leitores para a editora e amigos da casa, construindo assim a unidade e coerência visível em todo o catálogo.

uma característica que distingue a abysmo das outras editoras é o facto de cedo ter percebido que se o livro não se promover por si não vai ter vendas. e aqui a promoção é entendida de um ponto de vista diferente da promoção que vemos em grandes grupos editoriais que têm por trás uma gigante máquina de marketing e fundos que a alimentam. neste caso o João Paulo percebeu que o livro tem qualidade por si e que o que a editora tem obrigatoriedade de fazer é mantê-lo vivo usando dessa mesma qualidade. e isso pode ser feito através de redes sociais, dinâmicas em que os autores se apresentem em público, exposições ou outros eventos associados ao livro impresso (a abysmo é hoje também uma galeria de exposições).

podemos dizer que o João Paulo não descobriu segredos bem guardados mas observou as diversas formas de se fazer edição e juntou ingredientes de sucesso - o tipo de sucesso que o interessava, o que os permite crescer sem comprometer em nada a qualidade literária. o sucesso advém apenas dessa mesma qualidade. o João Paulo juntou assim novos autores em quem acreditava fortemente, decidiu que não queria criar cânones e sim escritores, juntou com mestria escritores com ilustradores, criou uma família onde transparece amizade e cumplicidade. percebeu também que ao arriscar em novos autores está não só a criar leitores no presente como também leitores do futuro.




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